Rapper denuncia racismo ambiental no contexto da tragédia no RS
Em menos de seis meses de funcionamento, o recém-inaugurado Museu da Cultura Hip Hop, o primeiro e único do gênero na América Latina, localizado na zona......
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Por CGN
Em menos de seis meses de funcionamento, o recém-inaugurado Museu da Cultura Hip Hop, o primeiro e único do gênero na América Latina, localizado na zona norte de Porto Alegre, se tornou um espaço importante na logística de coleta e distribuição de doações às famílias afetadas pela enchente na região metropolitana da capital gaúcha.
Museu da Cultura Hip Hop tornou-se central para recebimento e destinação de doações no RS. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Quem dá as coordenadas na ação, que envolve dezenas de pessoas, é o ativista, rapper e MC Rafa Rafuagi, uma das principais referências da cultura de periferia no Rio Grande do Sul. Ali, em pouco mais de três semanas de emergência climática, foram 200 toneladas de itens como roupas, cobertores, camas, colchões, água, alimentos, entre outros, escoados para as regiões mais atingidas de pelo menos 10 municípios do estado.
“A gente está na fase da retomada dos lares. Não estamos na fase mais crítica, quando tinha falta de alimento, de água, de tudo”, descreve Rafuagi, que recebeu a reportagem da Agência Brasil na manhã de sábado (25), na sede do museu, onde comandava a saída de mais um caminhão de entrega, repleto de colchões e roupas de cama, com destino a Canoas.
Ele próprio viveu na pele essa fase dramática do estado.
“Quando tu tá vendo a água subir, parece cena do [filme] Titanic, as pessoas com coisas na mão tentando correr para salvar algo, as mães com crianças no colo. Um vizinho me ajudou a subir a geladeira, os móveis, mas não adiantou nada. Foi tudo perdido”, conta.
Rafuagi, 36 anos, é porto-alegrense de nascimento, mas cresceu em Esteio, na região metropolitana, onde fundou uma Casa de Cultura Hip Hop. O espaço é a semente do que veio a ser o museu, e berço de um ativismo que teve seu ápice no ano passado, quando rapper foi figura central na cerimônia que marcou a edição, pelo governo federal, de um decreto de fomento da cultura periférica e apresentação de um projeto de lei para instituir o Dia Nacional do Hip Hop no Brasil. Cultura preta por excelência, forjada nas periferias das metrópoles, o Hip Hop que corre nas veias de Rafuagi o faz denunciar o apagamento da presença afro-gaúcha em contexto de grande sofrimento da população.
“Em São Leopoldo, onde o presidente estava, uma das maiores periferias é a Feitoria, bairro mais populoso da cidade, com dezenas de milhares de pessoas negras. (…) A enchente revelou, talvez, uma das faces que escancara tudo isso. Não estou dizendo que são majoritariamente pessoas negras, acho que todo mundo perdeu igual, e não estou aqui para dizer que um perdeu mais e outro perdeu menos. Todo mundo perdeu igual, infelizmente”, diz Rafuagi.
Apesar disso, argumenta, há um apagamento que recai sobre a pele negra quando se pensa no Rio Grande do Sul. Ele cita, por exemplo, que um programa de televisão foi dedicado a artistas gaúchos, porém só havia a presença de brancos e representantes de gêneros não periféricos.
“Populares [os artistas], talvez, mas não periféricos. Nesse sentido, a gente vê que é importante mostrar essa participação do negro na construção do estado e na ação própria emergencial que estamos vivendo”, acrescenta.
Racismo ambiental
Mapas produzidos pelo Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles mostram uma demarcação muito clara de desigualdade de renda e de raça nas pessoas que foram mais atingidas pela catástrofe. As áreas mais alagadas foram, principalmente, as mais pobres, com impacto proporcionalmente muito maior sobre a população negra, que representa cerca de 21% dos habitantes do estado, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Nesse caso, as áreas que mais sofreram com as inundações apresentam concentração expressiva de população preta e parda, geralmente acima da média dos municípios. É o caso de bairros como Humaitá, Sarandi e Rubem Berta, em Porto Alegre, e de Mathias Velho, em Canoas.
“Existe uma questão de racismo ambiental na cidade que está relacionado à catástrofe, essa relação de falta de lugares mais arborizados e as periferias estarem viradas em concreto, não terem praças. Se a gente for no Sarandi, que é o bairro que mais alagou [em Porto Alegre], são pouquíssimos espaços de lazer, espaços arborizados ou espaço que, de fato, as pessoas possam pensar em ações coletivas, como hortas comunitárias, uma ação popular. Não há um plano que pense a mudança desse paradigma, de construir mais espaços que possam pensar a qualidade do ar”, analisa Rafuagi.
Para ele, isso se combina de forma perversa com um negacionismo científico que predominou nas políticas públicas no estado.
Rafa Rafuagi aponta ainda negligência nos alertas de evacuação por causa de rompimento de diques, o que impediu que os moradores conseguissem salvar bens e sair das casas antes das inundações, além da falta de manutenção do sistema de prevenção nas áreas mais pobres. “Houve uma negligência, tanto da informação, da questão de alertas, de rompimento de diques. […] Há, no estado mais racista do Brasil, um negacionismo sobre a questão, de que não é investimento a questão ambiental, mas custo”.
Negritude gaúcha
Embora normalmente associado à colonização europeia branca do século 19, o Rio Grande do Sul é terra de nomes fundamentais do movimento negro, como o poeta e escritor Oliveira Silveira (1941-2009), um dos criadores do Grupo Palmares, que idealizou o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, como o Dia da Consciência Negra, em detrimento do 13 de maio, data da Abolição da Escravidão.
E de Petronilha Silva, professora porto-alegrense, relatora no Conselho Nacional de Educação do projeto que tornou obrigatória o ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos das instituições de educação básica, com a edição da Lei 10.639, em 2003, até hoje não plenamente cumprida.
Na história da construção do próprio estado, foram pretos escravizados que compuseram a lendária infantaria dos Lanceiros Negros, que formou parte do exército gaúcho na Revolução Farroupilha, mas que mais tarde acabaram sendo chacinados em uma emboscada preparada pelo exército imperial comandando por Duque de Caxias. Muitos historiadores vinculam o massacre dos Porongos, como ficou conhecida a emboscada, a uma ação orquestrada em acordo com o chefe militar dos farrapos, David Canabarro, o que facilitou um acordo de paz entre a elite rio-grandense e o Império.
“É fundamental que haja um processo de oportunizar que a história do negro do Rio Grande do Sul possa ganhar escala nacional, uma evidência mais forte. Porque isso, inclusive, gera um processo inverso que os brancos xenofóbicos racistas gaúchos fazem com o Norte e Nordeste. Por exemplo, agora, com a enchente, tinha muita gente falando: 'ah, por que ajudar o Sul? O Sul só tem branco, o Sul não sei o quê'. E esquecem que existem negros, um monte de terreiro de matriz africana aqui no Sul”.
“Agora, de fato, os negros não são a maioria da população no estado. Eles estão espalhados em regiões que não são, em grande parte, na área metropolitana, embora haja muitos negros na metropolitana. Esses negros estão na região sul do estado, que foi o caminho da migração durante a escravização, o porto de Rio Grande [litoral sul] como ponto de entrada. E eles ficaram mais por ali: Tapes, Camaquã, Aram Baré, Cangussu, Turuçu, Cristal, Pelotas, Rio Grande e Jaguarão. Em todas essas regiões, a população é negra, majoritariamente. Por outro lado, na região da Serra [Gaúcha], que são lugares majoritariamente mais brancos, por causa das colônias italiana e alemã, onde se assentaram e tiveram seus privilégios, não são tão habitadas por negros”, explica o rapper.
Afroturismo
Rafuagi prevê a retomada da programação normal do Museu da Cultura Hip Hop já na próxima semana. Até e eclosão das enchentes, o espaço recebia um média de 1 mil visitantes por semana, a maioria estudantes do ensino básico. Com cerca de 4 mil metros quadrados, o espaço conta com a exibição de mais de 500 artefatos, painéis e arquivos digitais que contextualizam a história do hip hop no estado, no Brasil e no mundo. Além disso, na área externa, há quadra, um multipalco, sala de oficinas e uma horta que produz frutas e hortaliças doadas para comunidades.
“Esse afroturismo busca conectar pontos de memória ou ação prática do movimento negro, em todo o Brasil, para que as pessoas quando vierem aqui não irem apenas a Gramado, um lugar branco e europeu. Virem no Museu do Hip Hop, irem no galpão cultural no Morro da Cruz, na casa do Hip Hop em Esteio, irem lá no pavilhão eco sustentável na Restinga, que é um bairro periférico daqui”, propõe o MC gaúcho.
Fonte: Agência Brasil
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