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Em ‘Os Evangelhos’, o elemento literário é o ponto-chave

Mas, quando se tratou de traduzir a Bíblia, a coisa mudou de figura”, afirma Borges. “Se Deus escreve um livro, se Deus se digna à literatura,...

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Por Agência Estado

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Em uma palestra proferida pelo escritor argentino Jorge Luis Borges em Harvard no fim dos anos 1960, ele reflete sobre como a Bíblia possivelmente provocou o surgimento da tradução literal: “Embora as pessoas considerassem Homero o maior dos poetas, sabiam que Homero era humano (…) e podiam assim remodelar suas palavras.”

Mas, quando se tratou de traduzir a Bíblia, a coisa mudou de figura”, afirma Borges. “Se Deus escreve um livro, se Deus se digna à literatura, então cada palavra, cada letra, como dizem os cabalistas, há de ter o seu propósito. E pode ser blasfêmia se intrometer no texto escrito por uma inteligência infinita, eterna.” Longe de ser blasfema, a empreitada de Marcelo Musa Cavallari, que está publicando sua versão em Os Evangelhos – Uma Tradução, pela Ateliê Editorial, pode ser vista como um esforço para restituir às escrituras sagradas um componente que estava no texto original e acabou se perdendo ao longo dos séculos: o elemento literário.

“Os Evangelhos são o livro da cultura ocidental. Eles são o fundamento básico, junto com a cultura grega clássica, do Ocidente”, afirma o tradutor em entrevista ao Estadão. Os quatro textos, atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João, foram escritos originalmente em grego, em algum ponto entre os séculos 1 e 2, para narrar a biografia de Jesus. Ao longo dos milênios, o caráter artístico desses textos foi se perdendo em detrimento de uma discussão mais teológica. No entanto, Cavallari defende: “Os quatro são muito literários e têm estratégias literárias muito diferentes entre si”.

O Evangelho segundo Marcos “tem a estrutura própria de um livro para ser lido em voz alta”, analisa o tradutor. “Lucas escreve como se estivesse continuando o Antigo Testamento, porque essa é uma reivindicação de que os Evangelhos são uma continuação do que vinha sendo revelado por Deus. Já João constrói um personagem de Jesus com discursos muito mais longos.”

Para recuperar esses aspectos literários, Cavallari se ateve a dois critérios em sua tradução. Um é o critério estético, “no sentido de tentar fazer o texto ter o seu brilho próprio a que se tem acesso lendo em grego, que é um texto muito menos domesticado do que parece na maior parte das traduções”, avalia. E o outro critério é “arqueológico, de tentar buscar o sentido que essas palavras tinham no momento em que elas foram escolhidas”.

Um exemplo do uso desse uso é a tradução da palavra “ángelos”, que é uma espécie de núncio, ou mensageiro, mas nos séculos posteriores à escrita dos Evangelhos acabou sendo transliterada do grego para dar origem a “anjo”, que tem uma conotação totalmente diferente. A fim de preservar o sentido original com que o termo foi escrito pelos evangelistas, Cavallari optou por “núncio” em vez de “anjo”.

“Uma diferença marcante na minha tradução é que nela não se encontram palavras esperadas como fé, anjo, apóstolo, porque, na verdade, quando se escolheram essas palavras, elas não tinham o significado que têm hoje”, explica o tradutor, que tentou produzir o efeito, no leitor de português do século 21, de se ter contato com os textos originais do grego no século 1. “Alguém que lê no grego ‘ángelos’ não vê na mente aquilo que alguém que lê em português vê ao ler anjo”, conclui.

Na introdução, Cavallari também deixa explícita a relação entre os textos dos evangelistas e a atividade tradutória: “O Evangelho é um grupo de quatro textos escritos em grego por judeus (com a possível exceção de Lucas), que podiam saber hebraico como língua religiosa, mas àquela altura conversavam em aramaico, numa região dominada por Roma, cuja língua oficial era, pois, o latim. Os Evangelhos são, desde o início, tradução”.

Enfatizar o elemento literário não significa renegar a relevância religiosa das escrituras, mas para Cavallari esses textos são capazes de comover mesmo quem não compartilha da fé cristã. “Os Evangelhos têm claramente um agenciamento literário, para que qualquer efeito que eles tenham venha da leitura deles. São obras que se bastam. Embora tenham tido um importante destino no campo das pessoas que são cristãs, eles em si foram compostos como textos e têm sua força como textos. Acredito que sobrevivam sozinhos e se impõem como textos para qualquer leitor.”

A tradução da Bíblia para o latim por São Jerônimo foi em grande medida responsável pela preservação do idioma mesmo após sua morte enquanto língua falada. Ao traduzir, Martinho Lutero ajudou a formatar e unificar o idioma e a identidade da Alemanha.

Se ao traduzir se cria uma nova forma de ler um texto, é novamente Jorge Luis Borges quem arremata a questão: “Na Idade Média, pensou-se que o Senhor havia escrito dois livros: o que denominamos Bíblia e o que denominamos universo. Interpretá-los era nosso dever”.

OS EVANGELHOS – UMA TRADUÇÃO
Aut.: Vários
Trad.: Marcelo Musa Cavallari
Editora: Ateliê (512 páginas, R$ 100)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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