Historiadores negros criticam legado heroico de Duque de Caxias
Descrições completamente opostas, mas que tratam do mesmo sujeito: Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. A primeira está no site do Exército......
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Por CGN
Pacificador e soldado de vocação, “seus atos de bravura, de magnanimidade e de respeito à vida humana conquistaram a estima e o reconhecimento dos adversários”. Genocida e racista, liderou uma repressão militar que “matou, de forma atroz, cerca de 10 mil pessoas entre a população pobre, negros e mestiços”.
Descrições completamente opostas, mas que tratam do mesmo sujeito: Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. A primeira está no site do Exército brasileiro, do qual ele é o patrono. A segunda, no site Galeria de Racistas, projeto idealizado pelo Coletivo de Historiadores Negros Teresa de Benguela, pelo site Notícia Preta e por um grupo de publicitários negros. As diferenças mostram controvérsias entre a história e a imagem do homem que nasceu há exatos 220 anos, em 25 de agosto de 1803. Data em que até hoje é comemorado o Dia do Soldado.
Caxias é figura comum nas paisagens urbanas do país. Municípios, instalações e monumentos homenageiam o militar. Há estátuas públicas dele em lugares como Curitiba (PR), Marabá (PA), Ipameri (GO), Rio de Janeiro (RJ), Santo Ângelo (RS), Vitória (ES), Porto Alegre (RS) e São Paulo (SP).
Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 – O Pantheon de Caxias, monumento em homenagem ao Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil – Fernando Frazão/Agência Brasil
Por muito tempo, a narrativa que exalta os feitos e o caráter de Caxias foi hegemônica na sociedade. Hoje ela é sustentada principalmente dentro das instituições militares. Entre os historiadores, há consenso de que para entender melhor a trajetória do militar é preciso, primeiro, desconstruir o culto criado em torno dele na primeira metade do século 20. Caxias nem sempre foi considerado o modelo ideal de soldado da pátria.
Construindo o mito
Um artigo do pesquisador Celso Castro, da Fundação Getulio Vargas, mostra que desde a Proclamação da República, em 1889, o Exército Brasileiro vivia um processo de crise interna, com divisões profundas entre os membros da instituição. Elas envolviam questões doutrinárias, organizacionais e políticas.
Um projeto interno começou a ganhar força e considerava que, para unir o Exército, era preciso construir nova identidade institucional e novos símbolos. A escolha de um patrono e de um modelo de soldado era parte importante desse processo. Até então, o general Manuel Luís Osório era o principal herói das forças brasileiras. E a principal comemoração militar ocorria no dia 24 de maio, em referência à Batalha de Tuiuti, na Guerra do Paraguai. Era conhecida popularmente como O Dia do Exército ou A Festa do Exército.
Em 1935, o então Forte do Vigia, no Leme (zona sul do Rio de Janeiro), mudou de nome para o atual Forte Duque de Caxias. O marco mais representativo veio em 1949, quando o prédio do Ministério da Guerra, inaugurado na Avenida Presidente Vargas (centro do Rio) foi batizado de Palácio Duque de Caxias. Uma estátua do militar, que estava no Largo do Machado, foi transferida para a frente do prédio. Também foi construído um panteão na área, que recebeu os restos mortais de Caxias, da esposa e do filho, que estavam no cemitério São João Batista.
Patrono do Exército
Um decreto do governo federal em 1962 oficializou Duque de Caxias como o patrono do Exército Brasileiro. No site oficial a instituição, uma biografia ressalta como ele foi galgando posições nas patentes militares e na hierarquia da nobreza do século 19. Os títulos de marechal e duque vieram depois das atuações na Guerra da Cisplatina (1825-1828), na Balaiada (1838-1841), na Revolução Farroupilha (1835-1845), na Guerra do Paraguai (1864-1870) e contra movimentos de independência em Minas Gerais, São Paulo e na Bahia.
O patrono ainda é um dos nomes mais celebrados em publicações militares. Uma busca pelo verbete “Caxias” na Biblioteca Digital do Exército encontra 504 itens. Desses, 476 se referem ao período entre 2000 e 2023. Em relação ao conteúdo, monografias mais recentes do acervo trazem análises predominantemente positivas. Um trabalho de conclusão do Curso de Oficiais Médicos, por exemplo, elogia Caxias pela “competência lideracional e a habilidade de negociar” durante os conflitos da Balaiada e da Revolução Farroupilha. Em outro texto, produzido na especialização em Ciências Militares do Exército, o autor afirma que Caxias criou “um modelo de liderança que viabilizou a vitória brasileira” na Guerra do Paraguai e seria, portanto, “um exemplo a ser seguido no que se refere à união da tropa”.
Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 – O Pantheon de Caxias, monumento em homenagem ao Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil – Fernando Frazão/Agência Brasil
Derrubando o mito
Em 2008, a historiadora Adriana Barreto de Souza publicou o livro Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Em entrevista à Agência Brasil, ela explica que a imagem institucional do militar é baseada em pelo menos dois mitos que não se sustentam historicamente. O primeiro deles diz respeito ao rigor e à disciplina. É comum uma pessoa com essas características ser chamada de “caxias”.
“A formação na Academia Militar no início do século 19, quando o jovem Luís Alves de Lima e Silva (futuro Duque de Caxias) a frequentou, funcionava precariamente e, para os padrões atuais, era totalmente desmilitarizada: o regime era de externato, as regras disciplinares eram as mesmas das escolas civis e os alunos sequer usavam uniformes”, diz a historiadora. “O padrão atual, que faz uma associação direta entre a carreira militar e a incorporação de um conjunto de valores orientados por uma disciplina rigorosa, pela aquisição de conhecimentos técnicos específicos e por uma forte unidade corporativa, não valia para o Exército do século 19”.
Galeria de Racistas
Com o objetivo de descontruir narrativas históricas enviesadas, o Coletivo de Historiadores Negros Teresa de Benguela criou a Galeria de Racistas. O site lista monumentos de brasileiros que cometeram crimes contra a humanidade. O projeto surgiu no contexto dos protestos pela morte de George Floyd, nos Estados Unidos, e a derrubada da estátua de um traficante de escravos na Inglaterra, ambos em 2020. O Duque de Caxias foi incluído na galeria por causa de ataques contra escravizados e quilombolas.
“Podemos falar em um herói com a estátua suja de sangue. Um exemplo é que ele agiu de forma diferente na Revolução Farroupilha, liderada por uma população mais branca, de descendência europeia, e na Balaiada, uma revolta que tinha quilombolas, uma população negra e pessoas de origem ameríndia. Foi por causa desse último conflito que recebeu o nome de Caxias: era o mesmo nome da cidade no Maranhão onde a repressão liderada por ele matou cerca de 10 mil pessoas”, diz Jorge Santana, do Coletivo de Historiadores Negros.
Segundo o historiador, o racismo de Caxias ficou mais evidente quando ele lidou com dois grupos diferentes da Revolução Farroupilha. Com os líderes brancos, o militar preferiu negociar do que ir para o confronto armado. E o acordo envolveu a traição a um grupo de soldados negros que tinha se juntado à Revolução, com a promessa de ser libertado ao fim do conflito. Um dos comandantes farroupilhas, David Canabarro, enviou carta para Caxias com as coordenadas geográficas do local onde estavam os soldados que ficaram conhecidos como lanceiros negros. Pelo menos 100 foram mortos pelo Exército, no que ficou conhecido como o Massacre dos Porongos.
Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 – O Pantheon de Caxias, monumento em homenagem ao Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil – Fernando Frazão/Agência Brasil
“Ele agiu com repressão armada, mas também com estratégias de espionagem, suborno e intriga. Porque ele aprendeu que uma maneira de manter a hierarquia da sociedade não era somente por meio do açoite, mas também por meio de outras estratégias”, complementa a historiadora Camilla Fogaça.
“A história é sempre feita em relação ao presente. Então, o presente olha para o passado e vê aquelas ações como erradas, criminosas e incompatíveis com a carta constitucional vigente de 1988. Portanto, para a sociedade do presente, essa figura não pode estar em um pedestal como um herói, porque o herói é um modelo que inspira a sociedade. Com uma Constituição que condena a escravidão e os crimes de guerra, ter um herói nacional como Caxias é uma contradição”, diz Jorge Santana.
A reportagem da Agência Brasil entrou em contato com o Exército para comentar as críticas ao patrono da instituição, mas até o momento não houve resposta.
Fonte: Agência Brasil
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